Ela acreditava que as coisas ruins que ficavam presas em seu corpo sempre aumentavam de tamanho, podendo inclusive tomar conta, tal como um câncer. Não que tivesse medo, mas temia pelas pessoas queridas ao redor, ninguém tinha a obrigação de saber cada um de seus ódios ou cada uma de suas angustias.

Sentia vontade de abrir cada pedaço com uma gande faca enferrujada e tirar de si os excessos, o excesso de gordura, o excesso de tristeza e em seguida queimar-se para acabar com toda essa feiúra.

As pessoas a achavam exótica, com seus olhos de cigana, castanhos e profundos, sempre dominados de uma doce melancolia, como se sempre procurando algo além. Tinha longos cabelo castanhos e uma pele muito branca, o cabelo era como se uma moldura para aquele rosto que parecia ser esculpido em madeira.

Namorava um rapaz que a tratava mal, não lhe dava atenção e nem carinho. Quando ia ao cinema, sozinha, pois o moço não gostava do filme que ela gostava, observava em silêncio os casais namorando, excitados e sentia vontade de morrer.
Para ela o que sobrava eram transas rápidas e muita agressão.. Sabia que merecia cada tapa e cada esguelamento, gostava de ser machucada, era uma coitada. O namorado sabia disso e a tratava feito lixo.

Nunca experimentou a paixão e nem o amor. Era vazia, o namoro de anos não a deixava feliz, sempre tinha algo faltando. Falava do tesão que uma moça de 20 e poucos anos deveria sentir, falava da esperança de um dia se alguém, da tristeza que sempre passava.

Mas a tristeza continuava, dia após dia, durante toda sua vida.

Pensava em se matar, pensava em fazer várias coisas.. e não fazia nada, era um fracasso.

Gostava de torturar-se a si mesma, com queimaduras, cortes, fome e magoando a si própria.. Sua vida era abortada por ela mesma.
Olhando suas fotos, sentia repulsa pela criança bonita que se tornou a adulta abominável.
Sabia que quem pensa em suicídio raramente se mata. Mas, para ela, a vida acabara no instante em que nasceu. Nada fazia, nada deixaria.

Não havia lugar para ela, deveria apodrecer e sumir.. sabia disso. Era apenas um impecilho a família, já que tinham vergonha de sua feiúra, ao namorado, que teria que comprar um saco de areia para descontar a raiva.

Achava que não teria coragem, mas teve.

Vestiu seu belo vestido verde com uma sandalia prateada, que a deixou particularmente bela, maquiou-se, foi no meio das flores do jardim, e lá, estourou seus miolos. Seu sangue uniu--se ao lugar de onde jamais deveria ter sido retirado.

O mundo e a cabeça nunca foram generosos com ela.

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Cães sem pátria

moro em uma cidade que não se preocupa comigo
qualquer estranho é prioridade enquanto definho
sou pessimista por causa desse ar de cidadezinha grande
mesmo sendo apenas uma cidadezinha escrota de caipiras.

eis que ao ver ao meu redor
cada dia mais vejo pessoas que nada me dizem
pessoas que parecem cachorros
cachorros de rua e sarnentos, que buscam refúgio nesse imenso canil

eu, como nasci aqui, tenho raça
e os coitados sem pátria, são apenas cães vagabundos
com seus olhinhos amendoados
e suas caras de coitados

às vezes tenho vontade de morrer
morrer por todas as coisas feias que me cercam
e por todas as coisas bonitas que não vejo.

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